segunda-feira, janeiro 01, 2018

Carta a Fátima


Lembras-te Fátima? era o que eu sempre te dizia, não somos nada nas mãos do acaso, e não há mais filosofia do que esta: deixar andar, tanto faz, hoje ou amanhã morremos todos, daqui a cem anos que importância tem isto, quem se lembrará de nós? quem se lembrará de mim? se nem tu já te lembras de mim agora, tu, a quem tanto amei, não te lembras, e foi há tão pouco, foi ontem, parece, que te levantaste e disseste: «Ficamos amigos como dantes»… E dizias: como dantes e era já noutro que pensavas, olhavas-me e nos teus olhos ria-se a traição, o prazer da liberdade, um desafio alegre, uma alegria provocante e desapiedada, ias a meu lado pela última vez e eu era já um estranho para ti, um fantasma a quem se concede, por caridade, uns momentos mais de companhia, algumas palavras vagas distraídas, um pouco de estima, talvez. Reparei: o teu corpo, oh corpo do meu prazer! oh carne virgem sangrando debaixo de mim! oh meu repouso e minha febre! o teu corpo outrora tão cativo e tão submisso, ficara de repente cerimonioso e esquivo, cauteloso, afastado, com um pudor forçado no puxares a saia sobre os joelhos, como se tivesse uma grande vergonha do despudor com que se dera antes…

Dizias: como dantes e não era já nisso que pensavas, e não era já para mim que falavas, eu era uma coisa para esquecer, para deitar fora, uma coisa que se abandona caída no chão e se perde sem pena. Dizias: «adeus» e saías da minha vida com um aperto de mão desembaraçado, quase cordial um gesto de boa camarada, como se nada tivesse havido antes, como se não tivéssemos sido tantas vezes na cama, um dentro do outro, um no outro, um-outro diferente, uma coisa sublime: Deus Criador, como os míseros humanos só ali o podem sentir e saber; um Outro que éramos nós ainda, mas tão transtornados, tão virados para fora de nós, tão esquecidos do mundo e de nós, tão eficazes, tão leais, nós boca com boca, corpo a corpo, um sexo torturando um sexo, mordendo-se devorando-se, numa febre de chegar ao fim depressa, ao esquecimento, ao repouso. Disseste: adeus e eu odiei-te logo nesse minuto, como te odeio agora, não por ti ou pelo teu corpo que já me esqueceu noutros que vieram depois, mas porque morri ali naquela palavra, -morri entendes? -, perdi-me numa grande confusão, esqueci-me de ser eu, fiquei roubado do meu passado.

Hoje, encontrarias um outro homem; havia de rir-me do teu corpo, da sua entrega ou das suas traições, de tu me dizeres: «Vem» ou «Adeus…», ou «Não quero…». Hoje, saberias quem fizeste com uma só palavra, conhecerias um outro homem, que é obra tua, minha segunda mãe! Hoje, havia de rir ou chorar, era a máscara do momento; mas diria: tanto faz…, tanto me faz… Sabia-o!

Luiz Pacheco

domingo, junho 22, 2014

Um método infalível para se decretar a morte

As ruínas, com o acúmulo do tempo de abandono, deixam de ser recuperáveis e passam a ser "não-lugares sem memórias". Para muitos, tais não-lugares passam a não ter sentido e a ser desnecessários, o que legitima o acto destruidor como condenação inevitável. (...) Tornaram-se massa disforme, obsoleta, inóspita, por vezes até agressiva da paisagem envolvente: isto é, retiraram-lhe as valências que lhe justificavam o ser, antes de razões-outras conduzirem ao abandono e à inevitável transformação. É um método infalível para se decretar a morte.

Vítor Serrão. Portugal em ruínas. Uma história cripto-artística do património construído, 2014.

Sobre duas viagens de comboio, um apartamento pré-fabricado mas com o encanto daquele pé direito, a inscrição, as ruínas, a antropologia da modernidade, uma aula, morangos deixados cortados num frigorífico, um passeio ao fim do dia, um livro comprado no Pingo Doce (sem ser aberto) e uma conversa num arraial, ainda um regresso a casa por um caminho que eu não sabia que existia. Não é complexo: é a vida e está tudo bem.

sábado, junho 21, 2014

Não se pode medir, calcular, torná-la obedientemente exacta.

Há quem persiga o poder, o dinheiro, a fama. Eu persigo a beleza. Não é uma escolha. É uma condenação. Sem beleza faleço. É um trabalho difícil, muitas vezes doloroso, cheio de revezes. Já passei dias e dias com as mãos na garganta apavorado que ela não volte a visitar-me. É difícil dizer o que é aquela poderosa presente ausência que nos oprime e agarra. Nunca está onde está, mas sempre um pouco mais longe, noutro sítio. Não são cores, imagens, sons, nem sequer a suave pele de uma mulher que me encantam. É o que está para além disso e que isso chama. A beleza corre o permanente perigo de a qualquer momento se desfazer em nada. É, na verdade, por completo insustentável. Não se pode medir, calcular, torná-la obedientemente exacta. É impossível provar que existe. Daí a urgência, o coração a bater na boca. A perseguição da beleza é uma corrida de obstáculos sem meta de chegada. Basta o som de uma voz para rasgar futuros. Basta uma fotografia de uma mala fechada sobre  uma cama para abrir horizontes. Todos os cuidados são insuficientes. É um trabalho longo preenchido de mistérios. Se se procura controlar, escapa. Se se procura guardar, esvai-se entre os dedos. Tem de ser roubada com toda a rapidez e mantida no movimento que é só dela. Se se tenta parar, fixar, já não vale a pena. O dinheiro tem certamente as suas vantagens. Uma das poucas coisas que serve para várias. E a beleza não serve de nada. Atrapalha. Provoca desastres nas famílias, intoxica-nos até ao desmaio, não poupa nada. Devia ser proibida. É um escândalo no meio do mundo. É a causa do espantoso medo que é perdê-la. Não escolhi ser quem sou, este vício de que sou escravo. O que mais importa ninguém escolhe. Já tentei ser tantos para escapar de mim, para me desviar desta vida que me deram. E depois vem a beleza. Surpreendente ao virar de uma esquina. Um desejo marcado no ponto de encontro do aeroporto onde ficaremos para sempre abraçados. A tomar duche à minha frente. A irromper do nada. A primeira coisa que um qualquer fanatismo sabe que tem a fazer é demolir com a beleza. Com todo o direito, de todas as maneiras. A beleza semeia a desordem nas almas e nos corpos que anima. A beleza alimenta-se de uma liberdade particularmente virulenta. É impertinente. Não conhece regras. Vive da vida e de mais nada.

Pedro Paixão, O mundo é tudo o que acontece.

domingo, maio 11, 2014

The destructive sublime

The contradiction between the aesthetic and the moral seemed to reach a crisis toward the end of World War II, when photographers entered the concentration camps and saw for the first time the reality of the horror that had until then not been widely visible, though certainly rumored. One British photographer, George Rodger, solved the dilemma by refusing to contaminate a sense of outrage with any aesthetic dimension. Rodger, who would become in 1947 one of the cofounders of Magnum, found himself at one point in the act of photographing a pile of corpses, "subconsciously arranging groups and bodies on the ground into artistic compositions in the viewfinder." (In fact, Rodger was not the first photographer to arrange corpses for the camera—Alexander Gardner had staged some of his most famous images as well in photographing the aftermath of Gettysburg, but it took scholars more than a hundred years to figure that out.) Rodger's realization that he was treating "this pitiful human flotsam as if it were some gigantic still-life" led to a paralyzing self-consciousness: aware of the grotesque contradiction between aesthetic requirements and his sense of moral outrage, he stopped taking pictures.

Miles Orvell. After 9/11: Photography, the Destructive Sublime, and the Postmodern Archive. Michigan Quarterly Review (2006), XLV, 2.

Insaciado.

Depois de ter criado o conceito de Deus, o Criador, o homem deu por si insatisfeito. Com efeito, apesar do comprovado valor pragmático desta imagem, através da qual as artes nobres da música e da literatura, da arquitectura, da pintura e da escultura, juntamente com as artes menos nobres do homicídio, do furto e da exploração humana em geral, foram transportadas até às alturas, algo ficara ainda por concretizar: o impulso de curiosidade no homem continuava insaciado.

[...]

Assim, o significado mais profundo de uma máquina, a câmara, emergiu aqui na América, o altar supremo do novo Deus. Se isto é irónico, poderá igualmente ser significativo. Com efeito, apesar do nosso aparente bem-estar, estamos, talvez mais do que quaisquer outras pessoas, a ser esmagados pelo calcanhar do novo Deus, destruídos por ele. Não simpatizamos particularmente, como Natalie Curtis assinalou recentemente em The Freeman, com a atitude algo histérica dos Futuristas em relação à máquina. Aqui na América não estamos a lutar, como talvez seja natural fazer em Itália, para nos libertarmos dos tentáculos de uma tradição medieval e nos lançarmos nos braços neurasténicos do novo Deus. Temo-lo connosco e sobre nós como uma vingança, e acabaremos por ter de fazer qualquer coisa acerca disso. Não apenas o novo Deus mas toda a Trindade têm de ser humanizados para que não nos desumanizem a nós. Estamos talvez a começar a perceber isso.


Fotografia e o Novo Deus. Paul Strand, 1922.